Quem não tem teto de vidro?
- Daniela Abarca
- 2 de fev. de 2021
- 4 min de leitura
Atualizado: 31 de ago. de 2021

De forma singela como este convite que o título nos faz, me pus ontem e hoje a pensar o que em nós nos convence estarmos imbuídos do direito ao cancelamento de pessoas e atitudes. Para iniciar esta reflexão cabe talvez uma certa contextualização. No ar neste momento pela rede de televisão Globo o programa Big Brother Brasil trouxe na exibição uma suposta brincadeira - cujo nome já nos levanta uma série de questões - chamada Jogo da Discórdia.
A proposta era a de que os participantes do game apontassem quem dos colegas era a seu ver um cancelador. O apresentador fez uma breve introdução supostamente para colocar todos num mesmo patamar de avaliação explicando que por cancelador estavam sendo tidas as pessoas extraordinárias, quase que divinas, que se julgavam donas da verdade ali dentro do jogo e buscavam impor isso a seus adversários. E o convite e o circo estavam armados: “seja você também um cancelador ao apontar quem é um cancelador”.
Começando pelo título do quadro, Jogo da Discórdia, pode-se tomar como explícito o propósito da atividade seja como causador ou revelador. Penso caber aqui inúmeras leituras possíveis. A primeira olhada o Jogo da Discórdia pode ser interpretado como uma forma de provocação, ou promoção da discórdia entre os participantes. Fato é que os números de audiência e promoção nas redes sociais é gigantesco quando há discussões, brigas e trocas de ofensas em programas como este, no final das contas o negócio é fazer dinheiro e deixar patrocinadores satisfeitos. No entanto pelo menos um outro ângulo, e talvez uma oitava abaixo nos convide a pensar o que de fato é revelado, descoberto e não provocado em momentos como este. Esta visão nos chama para refletir sobre este lado julgador presente no humano o qual por vezes se conhece e ex(im)põe ao mundo sem pudor algum, mas talvez também acorde uma batalha interna que outros travam cotidianamente em busca da tão sonhada empatia, “não faça aos outros o que não gostaria que lhe fizessem”.
Viu-se um jogo de forças, de um lado alguns competidores nitidamente buscavam na esquiva, manterem ocultos seus julgamentos e incômodos com a postura de outros participantes e por outro o apresentador pressionando para que tudo fosse trazido à baila, que as opiniões e julgamentos tornassem-se ainda mais público, afinal deixou claro mais de uma vez que o propósito e o compromisso assumido por eles ao se inscreverem ou aceitarem o convite ao programa é a auto exposição nua e crua. Mas havia ali também um outro convite, aponte não somente quem é um cancelador, mas vá além e conte-nos o porquê, exponha seu colega e seu “pecado”.
Em um visão mais romântica e menos capitalista podemos ter aquela que preconiza que as pessoas podem ser mais felizes e se sentirem mais íntegras ao se assumirem, seja em suas preferências sexuais, em sua posição política, suas opiniões e sim o próprio julgamento que faz acerca de fatos e pessoas que apreende subjetivamente. Será que apoiados nesta visão uma rede de televisão da grandeza desta pensa contribuir para a versão mais íntegra dos participantes ao “tirar a saca rolhas” usando um termo dito pelo próprio apresentador do programa a verdade de cada um deles. Duvido muito, mas há que se considerar mais este ângulo.
O fato é que o julgamento faz parte da natureza humana, se hoje tem o nome de cancelamento, ok mais uma forma de se falar da mesma coisa. O homem projeta para fora de si tudo aquilo que não suporta em si mesmo, e por suporta entende-se não só o que não aprecia, mas que não consegue conter de fato, aquilo que lhe pesa além das próprias forças. Enxerga-se como algo fora de si algo que pode ser alvo de um combate interno consciente ou inconsciente, ou também o que anseio, desejo e sobretudo invejo no outro, mas nem sempre reúno coragem para assumir para mim mesmo e menos ainda para um outro.
Vimos no show de horror da exibição de ontem pessoas revelando seu lado mais primitivo ao descontar toda sua raiva, frustração, impotência nos demais por meio de acusações afiadas, fortemente pressionadas pelo confinamento, mas também por serem quem são. Tal como não podemos culpar a Covid-19 por toda barbárie que estamos vivendo principalmente dentro de nós, uma vez que a pandemia descortinou a dificuldade que todos temos, em maior ou menor grau, do convívio íntimo obrigatório, estreito com familiares e amigos, mas também e principalmente cada um com si próprio, o confinamento e isolamento proporcionado pelo jogo não é o gerador das posturas assistidas em cadeia nacional. Já estavam ali silenciosamente dentro de cada um, dentro de todos nós só aguardando o momento de se revelar.
Tolerância meus amigos, tolerância, antes com a gente mesmo, com estes juízes que residem em nossa morada buscando o diálogo íntimo de que somos um apanhado de falhas e incompletude em meio a um tanto de belezas e recursos também. Como diria minha avó “vá cuidar da sua vida minha filha e deixe que o outro cuide da dele”. Quanta erva daninha cresce em seu terreno enquanto passa tempo admirando ou criticando o jardim alheio?
"E num piscar de olhos lembro tanto que falei, deixei, calei E até me importei mas não tem nada, eu tava mesmo errada Cada um em seu casulo, em sua direção, Vendo de camarote a novela da vida alheia Sugerindo soluções, discutindo relações, bem certos que a verdade cabe na palma da mão"
Pitty - Teto de Vidro
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